ANTES DOS COLONOS CHEGAREM, OS INDÍGENAS ESTAVAM AQUI

Confira a seguir uma entrevista com o professor Rogério Leandro Lima da Silveira. Ele atua na pós-graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Conversamos, principalmente, sobre a construção da periferia na cidade e seus arredores e como a região é dependente das empresas de beneficiamento do tabaco. 

 Claudine Zingler: Como o senhor começou a trabalhar com desenvolvimento regional? E como o senhor combinou esse assunto com a questão do tabaco?

Rogério da Silveira: Sou geógrafo, morei muito tempo em Porto Alegre. Vim trabalhar em Santa Cruz do Sul na época da FISC (atual Unisc), em 1989. Quando eu cheguei aqui, me chamava a atenção – eu conhecia Santa Cruz só pelo trajeto entre rodoviária e hotel e do hotel para a FISC e pelo caminho inverso. Tive a oportunidade de conhecer um pouco melhor e circular pela cidade com alguns colegas santa-cruzenses que me levavam para conhecer, principalmente, a realidade da produção de tabaco na região, que eu não conhecia. Desde 1989 até os anos de 1992 e 1993 foi me despertando o interesse de trabalhar com o tema – eu já havia trabalhado em Porto Alegre com a periferia urbana – da forma que a periferia urbana, no caso de Santa Cruz, estava se constituindo no início dos anos 90.

E aí fiquei muito interessado por entender como foram se constituindo as Vilas. Na época eram outros nomes de bairros, como Boa Esperança, Vila do Lixo… E a pesquisa foi me mostrando a importância de resgatar esse processo de constituição da periferia urbana ocupada por trabalhadores que vieram de várias cidades da região e que trabalhavam, basicamente, para indústria do tabaco, principalmente as mulheres, que é característica da mão-de-obra da indústria. Fui também trabalhando no processo de periferização da cidade. A partir daí, no doutorado em Geografia, no ano de 2002, eu procurei então avançar para compreender o complexo do tabaco e a região. Saí de Santa Cruz e fui olhar para região do Vale do Rio Pardo. Daí, surgiu a tese “Complexo do tabaco e a agroindústria do fumo na região do Vale do Rio Pardo”. Foi legal porque na tese, a princípio, eu ia fazer um trabalho datado, dos anos 90 para cá, sobre as transformações na região em função da agroindústria do tabaco. Só que aí foi aquela coisa de doutorado: tu vai indo atrás, vai indo atrás, vai procurando, vai lendo coisas… E uma coisa que me chamou muito a atenção foi  ler os naturalistas que passaram por essa região no Século XIX, como Padre Balduíno Rambo, [Robert Christian] Avé Lallemant… E eles vão falando da presença do tabaco e das costas de tabaco que já existiam – eles estão passando por aqui em 1890, 1910. Eu cheguei à conclusão, conversando com meus amigos e colegas historiadores, que o tabaco também não chegou pelos imigrantes, chegou antes, pelos indígenas. Fui voltando mais no tempo, já estava lá em tempos pré-históricos. A minha orientadora disse: “Agora chega! Vai dar quantas páginas, isso?”. Foi muito legal porque, na época, tinha o Museu do Colégio Mauá – ainda tem, mas o acervo funcionava na Borges (de Medeiros). Ali eu achei muita coisa. Na época, o professor Hardi Martins ainda era vivo, o Seu Roberto Steinhorst era o ajudante dele e conhecia cada pedaço daquela biblioteca. Passei muitas tarde lendo materiais, pesquisas que eles, inclusive, tinham feito. O Hardi tinha feito pesquisas sobre a origem do tabaco em Candelária, no Forte Jesus Maria José, onde achou cachimbos, enfim. Até hoje de manhã, antes de falar contigo eu estava pensando em, daqui mais uns anos, transformá-la em livro porque eu acho que vai ser bem legal para ficar como uma contribuição para a história territorial da região.

Então, Claudine, foi assim que começou. Comecei com a periferia urbana, o que já tinha a ver com tabaco, principalmente com as indústrias de tabaco que formaram aquelas vilas de operários em seu entorno. As pessoas foram morar lá porque ficavam próximas do emprego e, por outro lado, também, a prefeitura destinou áreas para construir casas populares. 

Depois, na convivência e conhecendo um pouco melhor a região, participei do Corede, fiz muita extensão na região, fiz planos regionais de desenvolvimento e isso tudo foi me dando elementos para conhecer a região. Aí veio o interesse de entender o complexo do tabaco, procurando analisar como isso estruturava também as redes de cidades na região. Meu foco foi mais urbano, embora tivesse também que entender o rural para isso.

CZ: Como já tinha o tabaco aqui na região e como já era cultivado, esse foi um motivo para que se tornasse uma monocultura? 

RS: Antes dos colonos chegarem, os indígenas estavam aqui, principalmente os kaingangs nas áreas de matas, mais ali por Sobradinho, e ao longo do Rio Jacuí havia muitos guaranis. Em 1633, quando os jesuítas vão constituir Missões – e a gente sempre pensa em Missões e olha para Ijuí e Santo Ângelo… De fato, foi lá que começaram as Missões no lado do Brasil, mas a Redução Jesuítica Jesus-Maria (Candelária/RS) durou de 1630 a 1633 – quando os bandeirantes botaram tudo abaixo. Ali havia muitos indígenas, sobretudo guaranis aldeados pelos jesuítas, que já tinham uma prática de cultivo de outras coisas, como de mandioca, de tabaco. Muitos anos depois, séculos depois, vêm os imigrantes alemães para essa região, recebem terras e começam a plantar. Eles trazem muitas sementes na bagagem, entre elas, sementes de tabaco, que também plantavam na Alemanha naquela época. Naquela época, a Alemanha não existia como país, era uma série de ducados, principados. Eles vêm para cá e começam a testar. Além disso, o governo gaúcho, o governo provincial da época, quando os colonos chegam, os concede sementes. Os colonos passam a ter cinco anos para começar a cultivar a terra, para começar a auferir um certo capital para começar a pagar os custos da viagem. O governo foi buscá-los e nessa ânsia de tentar ter êxito na produção em um solo totalmente diferente, em um ambiente totalmente diferente, inóspito para eles, em uma floresta fechada, eles começam a plantar. O milho vai vingar, a batata vai vingar e o tabaco também vai vingar, então a gente não tem muita certeza se o que vinga é o [tabaco] que veio da Alemanha ou se é [o tabaco] de sementes crioulas, nativas aqui do Rio Grande do Sul, que eram de origem indígena. Nessa mistura, o tabaco se presta como um produto que acaba tendo uma boa produtividade naquele período. Esse tabaco passa a ser transportado para as primeiras “vendas”, pontos de venda na então povoação de Santa Cruz – que nem era cidade -, e começa a se constituir um fluxo mais ou menos permanente. Veja, logo na virada do século XIX para o XX – 1890, 1910 –  já tem uma cooperativa de fumo, que é a Companhia de Fumo Santa Cruz, formada por comerciantes locais, que veem no fumo um bom negócio. Outras cooperativas também começam a se constituir, as notícias de que tem um pessoal plantando tabaco circulam e a Souza Cruz, empresa criada no Rio de Janeiro, olha para Santa Cruz do Sul. Ela, como fábrica de cigarros, precisava de matéria-prima. A Souza Cruz é comprada pela British American Tobacco, pelos anos 1920 e se instala aqui em 1921, e já começa o chamado Sistema Integrado de Produção, em que a empresa concede as sementes, se responsabiliza pela busca do tabaco nas propriedades, garante o preço, a compra… E essa prática do Sistema Integrado de Produção acaba “botando por terra” as outras empresas que eram mais frágeis e não tinham como competir com a “americana”, que era como as pessoas chamavam a empresa na época. 

Pouco a pouco, os agricultores vão migrando para serem integrados a essa grande empresa. Ainda perdura a Companhia de Fumo Santa Cruz, que nos anos 70 foi comprada pela Philip Morris. Eram as duas grandes que dominavam nesse período, até que nos anos de 1960 ocorre a grande crise de tabaco lá na Rodésia, na África, que era um país importante que produzia fumo e as empresas inglesas e outras multinacionais que atuavam lá resolvem vir para o Brasil porque já havia se essa “tradição”, digamos assim, de produção aqui. Nos anos 1960, 1970, muitas empresas multinacionais vieram para cá, tinha mais de 20 atuando aqui. 

Respondendo a tua pergunta, sim, a monocultura do tabaco nessa região aqui no entorno de Santa Cruz, principalmente no centro-norte – depois ela vai se expandir para todo o resto da região e para toda a região sul do Brasil – naquele período, foi se constituindo por isso: havia um saber-fazer, que veio de pai para filho, dos primeiros colonos que aqui chegaram, conheceram a planta, aprenderam a plantar, passaram as dicas do que não fazer para a geração futura, a geração se seguiu, por sua vez, foi repetindo, e como o tabaco era um produto que pagava relativamente bem dentre aqueles que eram produzidos, e tinha uma boa aceitação no mercado, pode-se dizer que essa região foi se especializando na produção do tabaco. Há uma característica muito particular, que era o solo, [fazer] sol boa parte do ano e, principalmente, um tabaco produzindo manualmente, artesanalmente, pela família toda desde o início. Isso atribuiu um valor para as folhas muito diferente do que é nos Estados Unidos com a mecanização, em que a folha chega toda detonada. [O motivo] foi por conta dessa especialização, desse saber-fazer da região – e não vou entrar aqui  no assunto das relações de subordinação dessas famílias às empresas, que também não são só flores nesse processo.

CZ: Gostaria que o senhor falasse sobre como a mudança espacial, essa organização da região ou da cidade de Santa Cruz se deu em relação às empresas de tabaco. Como que a criação da periferia se deu em um cinturão ao redor da cidade? 

RS: Algumas variáveis contribuíram para isso. Primeiro, a antiga periferia urbana, nos anos 40, 50, era ali onde hoje estão os bairros como Camboim, Bom Jesus… Esses eram os bairros periféricos da mancha urbana de Santa Cruz, que era menor e guarda uma relação muito próxima com a atual porque, se formos lembrar, algumas formas construídas ainda estão de pé. Por exemplo, onde hoje é o Hipermercado Big, era a planta da Souza Cruz, e isso já fica muito perto do Senai e do Bom Jesus, onde era a periferia. Quando estas empresas começam a perceber que elas precisam ampliar os espaços construídos, as suas instalações, e não conseguem fazê-lo na área urbana porque a cidade já foi se organizando, vem um processo de gestionar junto ao Poder Público municipal, que também tinha interesse em oferecer áreas livres para novas empresas de tabaco virem se instalar. Daí, surge a ideia de comprar aquela gleba lá no Distrito [Industrial], desapropriá-la e urbanizá-la. Acho que o Distrito foi inaugurado no ano de 1973, e ele foi considerado um dos mais modernos do Estado, pela estrutura, com pistas auxiliares, estação de bombeiros, tinha também um acordo com a CEEE (empresa de energia) para ter uma mini estação de energia para reforçar a produção. A partir daí, as empresas começaram a se instalar lá, a cidade crescia, havia muita gente vindo para trabalhar em Santa Cruz – não só pessoas da região, mas também de fora da região, inclusive. A pesquisa mostrou de onde vinham os safristas e onde [eles] vinham morar. O pessoal se instalava do jeito que podia em vazios urbanos, áreas públicas ou privadas que estavam sem ocupação. A tal da “Vila do Lixo” foi se formando lá onde hoje é a Boa Esperança, acho que [se chama] Santa Vitória. Esse pessoal foi se instalando junto às empresas, também procurando nas empresas alguma fonte de renda. Os vários loteamentos populares que a prefeitura depois foi fazendo – muito antes do Minha Casa, Minha Vida – foram naquela região do bairro Esmeralda, em direção ao Distrito Industrial. Depois veio o Minha Casa, Minha Vida e só reforçou essa ocupação. E há uma divisão grande entre o sul e o norte: o norte compreende os espaços dos condomínios; o sul, os espaços da população de baixa renda que ocupa condições mais precárias, como é o caso do Beckenkamp e outros tantos loteamentos, mas também Minha Casa, Minha Vida e outros loteamentos populares produzidos pelo próprio Estado.

CZ: Quando morei em Pelotas, reparei que a relação da região dos Vales com o tabaco é naturalizada. Nunca havia questionado porque é algo com o qual eu cresci.

RS: Sabes que uma coisa que me chamava muito a atenção quando eu vim trabalhar aqui era o trajeto da viagem. Eu vinha passando por aquelas curvas antes de chegar na Polícia Rodoviária e sempre tinha placas imensas dizendo “bem-vindo à terra do tabaco”, em um mega outdoor da Souza Cruz, depois na outra curva tinha alguma coisa da Philip Morris… Me chamava a atenção o quanto a força dessas empresas desse setor na cidade, na identidade da cidade, que, claro, não é só tabaco, mas por conta dessa hegemonia na economia, há muitos séculos já está arraigado. É aquilo que na literatura chamamos de “cidade corporativa”, de uma certa corporação que domina a cidade. E um pouco dessa questão da mobilização dos trabalhadores que tu falava antes, eu acho que é por aí. Não foram as empresas que abriram loteamentos para as pessoas irem morar perto do Distrito, foi o Poder Público, mas foi o Poder Público representando esse interesse. Ele podia pensar em outras áreas urbanas para instalar as pessoas, mas ele escolheu justamente lá para que elas ficassem também próximas [às empresas]. E as empresas, até hoje,  têm um sistema de contratação de empresas, como aquela empresa Primavera [Transportes], de Vera Cruz, e outras tantas, têm linhas de ônibus pelo interior buscando agricultores que, no período de safra, trabalham como safristas – isso a minha pesquisa mostrou também. Isso ainda vigora: os trabalhadores da indústria também são, muitas vezes, agricultores.

CZ: Essa questão da safra do tabaco – cultivo, colheita e beneficiamento – bem delimitada foi organizada para que isso fizesse sentido no tempo da empresa? 

RS: Eu acho que não deliberado, não foi pensado, mas acabou sendo conveniente para a empresa. Não acho que foi deliberado porque tem muita a coisa a ver com o próprio cultivo. A pesquisa mostrou também que lá no começo da produção, a safra durava muito tempo para o cultivo, colheita e cura. Com o passar do tempo, com a modernização do cultivo, com novas sementes, novas técnicas muito mais produtivas, do ponto de vista da diminuição do tempo de trabalho, a safra que antes durava oito meses foi reduzida para seis, cinco ou até quatro meses, com muito mais intensidade. Agora as empresas têm capacidade de processar uma grande quantidade de tabaco em menos tempo – porque as condições técnicas eram diferentes. Por exemplo, a Souza Cruz construiu um grande armazém refrigerado – não sei se ainda existe, mas acho que sim – que permitia comprar fumo em grande quantidade, armazenar e, ao longo do ano, ia processando na medida em que os demandantes do mercado internacional, que é quem compra a maior parte do tabaco do Brasil, assim determinassem. Isso deu para a empresa um poder de barganha grande porque quando os agricultores seguravam o tabaco nas propriedades para reivindicar um preço melhor, dizendo que só entregariam o fumo se o preço fosse x + 1, as empresas pudessem dizer: “Se vocês não querem entregar não tem problema porque a gente já tem aqui muito fumo estocado, podemos ficar sem o fumo de vocês por muitos meses”.

CZ: Ao mesmo tempo, o Sistema Integrado não permite fazer essas negociações.

RS: É, porque tem essa coisa de deixar os agricultores meio presos às empresas e [eles] não podem produzir para outro, embora os agricultores também tracem as suas estratégias. A pesquisa também mostrou as chamadas empresas “picaretas”, que são empresas que não existem e que compram fumo a mando das grandes empresas, pagando um pouquinho mais. O sistema é bem complexo.

CZ: Às vezes tu pensa que está conseguindo escapar, mas a multinacional é como se fosse um polvo, com seus tentáculos em muitos lados. É curioso observar porque as pessoas tentam criar alternativas, de alguma forma até conseguem, mas tem sempre um limite. A cultura também é muito ligada a um discurso de tradição familiar. A parte do cultivo tem um discurso muito arraigado na tradição, mas na parte dos safristas, essa lógica não se repete, correto? 

RS: Sim, exatamente. Isso que você menciona é muito forte mesmo, essa coisa da ideia de que existe uma certa tradição, uma certa identidade – que, OK, ela faz parte desse colonos que aqui chegaram e que tinham que “se virar” e o tabaco foi uma das plantas que deu certo, por vários motivos. Mas, [não é] que o tabaco signifique a única possibilidade… De fato, há um domínio grande do mercado, os agricultores têm uma dificuldade grande de diversificar, de passar a produzir outras coisas porque não têm o mesmo apoio e estão acostumados com aquele sistema de produção que “facilita” a produção do tabaco, mas existem algumas ações no campo da agroecologia que começam a dar resultado.

Um outro problema que a gente vê também no caso da fumicultura é o esvaziamento do campo por parte dos jovens e a população envelhecendo. Tem algumas iniciativas no sentido de fazer com que os jovens voltem e permaneçam no campo, como a EFASC (Escola da Família Agrícola de Santa Cruz), que tem tido um trabalho muito interessante e é um grande desafio porque esses jovens aprendem novos cultivos, novas estratégias de produção, mas quando voltam para a propriedade, têm um embate geracional com pai que quer continuar plantando tabaco. Eu tenho acompanhado relatos de alguns orientandos que trabalham com os professores EFASC. Eles relatam esses desafios. Mas, algumas famílias estão mais abertas e, pouco a pouco, além da roça de fumo, começa a aparecer uma roça de moranguinho, por exemplo, e algumas alternativas vão se fazendo.  

CZ: E como essa questão do tabaco é tão antiga, é um processo muito lento até conseguir fazer com que isso vá se transformando, correto?

RS: Agora lembrei de mais uma coisa: essa questão da identidade da produção de tabaco com os imigrantes de origem alemã vai por terra quando a gente vê a expansão do tabaco para outras regiões. Tu vais ter “pelo duro”, que é como o pessoal chama as pessoas de origem luso e afro-descendente, que é essa mistura brasileira, também produzindo tabaco, seja nas roças de Barros Cassal, Pantano Grande, até mesmo na região ao redor de Pelotas – fui fazer um campo lá na pesquisa que estava fazendo para a tese e conheci São Lourenço do Sul, que tem uns imigrantes alemães também, mas Canguçu que não tem muito alemão, é tudo misturado e tem muito, muito fumo… Depois fui para o Paraná, Santa Catarina, na região de Canoinhas, no norte, onde também tem muito caboclo. Enfim, é uma população que não tem nada a ver com migração [germânica] e pela qual o tabaco se expande.  Então, a expansão do tabaco e a manutenção dessa atividade como uma fonte alternativa de renda tem muito a ver também com a necessidade das famílias, o modo como a agroindústria cria mecanismos para vincular os agricultores, através dos contratos, – depois, para sair é bem mais difícil, levam anos até pagar as dívidas e ficarem “libertos” dessa relação de dependência. Já não dá mais pra dizer que o tabaco pode ser compreendido a partir de uma vinculação estreita com a região de colonização alemã.

CZ: É um discurso que  serve de argumento para que as pessoas persistam porque “se isso é tão antigo na minha família, como eu não vou dar seguimento?”. Mas, essa questão dos safristas me interessa muito. Aqui em Vera Cruz, tínhamos muitas empresas e nas quais muitas pessoas trabalhavam, mas a maioria das empresas foi embora. Hoje em dia existem algumas menores, locais. Esse trabalho manual é necessário, mas aconteceu uma diminuição. Por quê?

RS: Primeiro quero deixar claro que a minha tese foi defendida em 2007 ou 2008 e a minha pesquisa foi feita em 2005. Depois disso, até andei atualizando alguns dados, mas não tenho acompanhado tão a fundo as mudanças atuais. De fato, a redução no número de safristas foi muito intensa, mesmo. Nos anos 60 e 70, quando se dá o “boom” da indústria, a gente tinha aproximadamente 15, 20 mil safristas, depois foi reduzindo e mais tarde se estabilizou na faixa de uns 15 mil. Agora, parece que são de seis a oito mil – e isso tem a ver com algumas ações, como por exemplo: algumas multinacionais, como é o caso da Alliance One, que inclusive tinha sua sede em Vera Cruz durante uma época, decidiu fechar as atividades em Santa Cruz e foi para Santa Catarina. A Universal Leaf, que antes ocupava Venâncio Aires, foi para para Joinville, em Santa Catarina, por conta dos incentivos fiscais que os governos de lá concederam, mas também tinha uma questão com a política tributária, na medida em que o tabaco produzido aqui tem que pagar uma quantia quando passa fronteira. Uma parte da resposta para essa pergunta tem a ver com a saída de grandes empresas da região e das cidades de Santa Cruz do Sul e Venâncio Aires, especialmente, que são onde a maior parte das empresas se localizam [e a ida] para outros estados, principalmente Santa Catarina – com elas, vão-se muitos empregos. Outro aspecto é a modernização da atividade nas esteiras, embora o trabalho manual, como tu bem destacou, seja o que dá valor ao fumo brasileiro. Fora a qualidade do plantio e da cura, o manuseio cuidadoso das folhas que, principalmente, as mulheres fazem na linha de produção, garante uma qualidade muito grande quando o tabaco chega lá no exterior.

Então, houve um crescente aumento do uso de estruturas mais automatizadas, o que ainda não significou a substituição do trabalho manual, mas uma redução, sim. Também temos que pensar no contexto internacional de demanda por cigarro no mundo, com várias campanhas antitabagistas, [além de que] outros lugares passaram também a produzir e processar o tabaco. Para ter uma noção – não sei se isso mudou -, mas o principal consumidor de tabaco no mundo é a China que, por sua vez, é a maior produtora, mas boa parte do que ela produz não é suficiente para atender os bilhões de fumantes que a China tem, então ela vem buscar aqui no Brasil. Mas, ainda assim, a gente tem uma redução de fumantes a nível internacional e até mesmo no Brasil. Houve uma redução e isso fica fácil de ver nas estatísticas, quando a gente vê a exportação de tabaco no ano de 2002, que eu acho que foi uma das maiores que fizemos em termos de volume de toneladas, para agora, houve uma redução. [A demanda por tabaco] vem caindo – esses dias eu estava lendo sobre isso – a ponto de levar algumas empresas de cigarro a começar a investir em outros produtos que não o cigarro tradicional, como o cigarro eletrônico e outras formas de uso da nicotina.

Eu penso, Claudine, que são esses vários elementos: de um lado, a questão da automação, de outro, a saída de plantas daqui… Outro elemento é que houve fusões de empresas, em que uma gigante comprou a outra. Nessas fusões, elas se reestruturam e, muitas outras, fecham uma ou outra unidade. São várias coisas.

CZ: Finalizando, o que o senhor acha que aconteceria se, de um dia para o outro, as empresas de tabaco anunciassem a sua saída da Região dos Vales?

RS: Eu acho que a região ia sentir muito, ia ser bem complicado, em especial para as cidades de Santa Cruz do Sul, Venâncio Aires e Vera Cruz, que ainda têm uma dependência muito grande dos postos de trabalho, dos impostos e de muitas outras atividades que funcionam e que têm a ver com o setor, desde empresas de seguro até hotéis. Basta ver que aqui em Santa Cruz, há determinadas épocas do ano em que recebemos muita gente de fora do país, que vem para comprar tabaco. 

É claro, como todo o processo, vai haver a necessidade de se reinventar, buscar outra alternativa. No caso dos agricultores, que há séculos plantam tabaco, que outra atividade eles poderiam fazer? A gente tem discutido muito sobre isso na Unisc, no Desenvolvimento Regional, e ninguém tem certeza de como seria, há uma certa especulação, previsões com base em dados. O que a gente vem discutido é que não há uma única saída, não pode haver uma única saída, precisamos de várias alternativas, desde a agroecologia – mas apenas a agroecologia não vai dar conta porque a gente tá falando de milhares de agricultores que produzem tabaco, não é um grupo pequeno. Então, tem que se pensar outras cadeias, outros produtos, em como aproveitar essas mega estruturas industriais que elas iriam deixar para trás, se assim ocorresse. O que vai se fazer com essas plantas industriais e grandes superfícies? Vai se usar, como já foi feito quando o [Hipermercado] Big comprou? Vão se criar empresas, shoppings, ou outras atividades industriais para utilizar? Mas, não tenho dúvida que isso traria muitas dificuldades, principalmente a curto e médio prazo, até a região poder se reinventar e criar novas alternativas.

Acho que isso talvez seja mais desafiador porque durante esse tempo todo as alternativas não foram pensadas, regionalmente falando, justamente por achar que a galinha dos ovos de ouro estaria aqui para sempre. Há uma grande dificuldade de olhar de frente para essa questão. Vai chegar, de fato, o momento em que o tabaco não vai ter essa procura toda e [será necessário] pensar em muitas alternativas possíveis com a comunidade. É um trabalho para ser feito a várias mãos, com muitas instituições juntas e com o apoio do Governo do Estado.

Isso é uma coisa a se destacar: em 2004, quando o Brasil assinou o protocolo de controle do tabaco da Organização Mundial da Saúde, um compromisso de fazer uma campanha combatendo o tabagismo, que foi quando surgiram aquelas fotos nas carteiras de cigarro, a proibição das empresas investirem em esporte, cultura, e assim por diante. Havia um compromisso da União de deslocar recursos para os agricultores começarem a pensar uma reconversão, mas foi tão pífia a contribuição da União que não deu para começar nada. E a gente vive uma contradição porque o tabaco é um dos grandes produtos na pauta da exportação. Então, se em um lado estava o Ministério da Saúde, preocupado com a saúde das pessoas e exigindo que o país assumisse uma posição de combate ao tabagismo, no outro lado estava o Ministério das Relações Exteriores olhando para a pauta de exportações e os bilhões de dólares que o fumo trazia e traz para o país. A região ficou em um limbo, não recebeu recursos necessários e tampouco prefeituras, organizações, conseguem implementar essas pautas por falta de adesão da própria comunidade que ainda acha que está tudo bem.

CZ: É um trabalho de convencimento porque esses argumentos são tão enraizados e é natural ter aversão a uma coisa que nunca experimentou e tomara que isso vá acontecendo aos poucos e não bruscamente como eu supus na minha pergunta.

RS: Mas, tu sabe que exatamente isso já aconteceu antes? Em Venâncio Aires, quando a Universal Leaf foi embora para Santa Catarina, nos anos 90. Aquilo foi um baque tão grande porque só aquela empresa correspondia a milhares de empregos na cidade. A partir dali, o tabaco continua importante, mas a prefeitura fez um trabalho bem legal de diversificar a economia, trazer outras empresas do campo da refrigeração. Um dia desses, eu vi o prefeito apresentando o que foi feito durante os anos e o que me chamou a atenção foi que ele usou a saída da Universal Leaf como o marco de mudança na política. Então, algumas coisas locais têm sido produzidas, mas como tu disseste, o tabaco está presente no conjunto da região, ele se ramifica e tem uma influência muito grande, então alternativas têm que ser pensadas de várias formas.

 

Claudine Zingler
contato@claudinezingler.com.br
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