
22 ago A HISTÓRIA É UM ESPAÇO DE PODER
A seguir, leia a entrevista com o professor Mateus Silva Skolaude, do curso de História, da Universidade de Santa Cruz do Sul. Ele é autor do livro “Identidades rasuradas: o caso da comunidade afrodescendente de Santa Cruz do Sul (1970-2000)”. Nossa conversa focou, principalmente, no recorte racial necessário à abordagem da relação da Região dos Vales com o tabaco.
Claudine Zingler: Eu quero saber como tu chegou até aqui, qual foi o teu caminho percorrido, como foi esse processo até começar a estudar as relações raciais aqui na cidade.
Mateus Skolaude: A formação na área da história é muito voltada para perceber possibilidades no campo da história as quais não se tem acesso ou que contemplem perspectivas que contraponham as narrativas hegemônicas.
Eu sou natural de Cachoeira do Sul, cidade vizinha, mas morei em várias cidades do Estado… Então, de fato, tu tens, no caso de Santa Cruz, uma dimensão muito forte de um discurso germânico, efetivamente. E esse discurso germânico é carregado de determinada características que, de certa forma, são quase que valores intrínsecos à cultura alemã, como é a questão do trabalho, da higiene, do desenvolvimento, e o que me chamou muito a atenção desde a minha vinda, em 2001, para Santa Cruz, era que tu tinha uma comunidade negra efetiva na cidade e com uma demarcação territorial, espacial, também bem estridente. Eu acho que isso é normal, a situação de ter nas periferias uma situação de exclusão histórica, com a população negra mais marginalizada, mas, eu acho que no caso de Santa Cruz há um realce maior ainda, porque tem um contraponto. Por exemplo: no caso de Rio Pardo, onde tu tem uma determinada narrativa mais lusitana, tem uma caracterização que isso não fica tão estridente, a demarcação da riqueza e da pobreza não é tão perceptível. Claro, evidentemente, tu tem uma população negra pobre, mas isso não fica tão demarcado como é no caso de Santa Cruz, onde tu tem uma população negra efetivamente marginalizada. Isso me chamava muito a atenção e foi em cima disso que eu busquei estudar a questão do negro em Santa Cruz, mas eu não fiz só um recorte histórico, mas também sobre como uma sociedade negra se entendia dentro de uma cidade germânica. E para a minha surpresa, o que veio a se confirmar enquanto uma hipótese é que a comunidade negra se enxerga enquanto uma sociedade “outsider”, que reconhece o valor do outro, da comunidade germânica, como o valor do trabalho. É uma população que automaticamente se reconhece de forma mais subalternizada. Na minha dissertação de Mestrado, que ganhou um livro chamado “Identidades rasuradas: o caso da comunidade afrodescendente de Santa Cruz do Sul”.
CZ: É, mas o que tu fala sobre quando tu veio para Santa Cruz? Comparando com Cachoeira, eu imagino que a colonização germânica não seja tão presente lá como é em Santa Cruz. Tu notou essa rachadura que existe entre brancos e pretos?
MS: Eu vivi em outra cidade. Eu saí de Cachoeira muito cedo, mas eu morei em Caçapava do Sul, por exemplo, que é uma cidade que ainda é mais forte, não tem uma presença europeia, um discurso tão efetivo como é o caso de Santa Cruz e tem uma característica muito daquilo que talvez tu tenha percebido em Pelotas: dimensões de zona sul, regiões de latifúndio… que também tem uma marca de exclusão social e racial muito, muito forte, mas tem distinções. No caso de Santa Cruz, fica evidente o aspecto relacionado a essa demarcação porque tem uma narrativa como contraponto que é muito forte, a desse valor do elemento germânico, dessa coisa de uma epopeia civilizatória do século XIX, na [narrativa] de que grupos que trabalharam para conquistar isso que nós temos hoje. Então, tu tem essa demarcação. No caso da região sul, nos casos de Caçapava, Cachoeira e Pelotas, tu tem o discurso do Gaúcho que é muito forte de uma identidade regional. De certa forma, o negro é incorporado – a gente sabe que de uma forma subalternizada -, mas ele está presente nesse discurso do gaúcho. É incrível. Então, eu acho que essa é a distinção e que em Santa Cruz não tem uma característica muito voltada para o discurso regional do gaúcho. Ele até aparece, mas ele não se sobressai, como no caso do mito do pioneirismo alemão. Se tivesse que estabelecer uma perspectiva de análise comparativa nesse sentido, me parece que esse aspecto da germanidade como um discurso muito ostensivo é a questão que demarca essa dimensão.
CZ: Quando tu fala que o discurso é repetido… A gente ouve por tanto tempo isso que até internaliza e aceita como verdade. Eu gostaria que tu fizesse um panorama da realidade local do momento em que os alemães chegaram. A gente sabe que aqui não era tudo mato, que não estava vazio. Quando os alemães chegaram já havia pessoas vivendo no local. Como foi isso? Elas tiveram que estabelecer algum tipo de relação.
MS: É interessante. Hoje eu sou professor no curso de História da Unisc, mas eu trabalhei muito tempo com o Ensino Médio, dei aula em Vera Cruz. Comecei minha carreira na Escola Jacob Blész, na Linha Henrique D’Ávila e depois eu trabalhei 4 anos na Escola Anchieta, bem no centro – era uma escola católica.
Eu sempre costumo dizer que, do ponto de vista da história, as pessoas têm que entender que o passado constitui o presente. Eu sempre falo nas aulas de introdução aos estudos históricos que é o presente que reconstrói passado, não passado que dá conotação ao presente.
Eu problematizo isso. É sempre um presente que conta uma versão narrativa sobre o passado. Por exemplo, essa história de Santa Cruz como uma cidade de germânica, como a cidade com todos esses discursos que a gente conversava anteriormente, ela tem uma datação, ela não existe desde sempre. Ela começou a ser criada no final dos anos 70 e início dos anos 80. Começa-se a criar uma narrativa para a cidade, assim como a história do Rio Grande do Sul não existia. É sempre um olhar sobre o passado, é um recorte, e ao recortar, tu vai estabelecer uma determinada característica de representação sobre o passado.
O que disse quem criou essa história de Santa Cruz a partir dos anos 70? Que Santa Cruz começa a partir de 1849 com a chegada dos primeiros imigrantes, ou seja, tu estabelece esse marco como o início da cidade, que é exatamente a colonização alemã chegando, migrações europeias vindo para região do Vale do Rio Pardo. No entanto, antes tu já tem presença de luso-brasileiros, já tem um sesmeiro – que era o proprietário dessas terras, que era um brasileiro, talvez um descendente de portugueses -, tem escravos, tem indígenas… Ou seja, essa imigração não chega em um vazio civilizatório, já tem outros grupos aqui. A partir desse momento, vão ter relações entre diferentes grupos. Evidentemente, com o passar do tempo, determinado grupo, a partir de determinadas relações políticas e culturais, consegue ter acesso a espaços de poder e vai poder narrar a história. E a história é um espaço de poder. Tu vai ter a história de Santa Cruz a partir de 1970 e, não por acaso, vai ter a criação da Oktoberfest em 1984, que é uma festa com uma conotação étnica. Antes, a festa de Santa Cruz era a Festa Nacional do Fumo (Fenaf) – e o fumo não tem uma característica étnica -, é uma festa de uma cultura, o tabaco, uma cultura universal. Neste momento, existem campanhas antitabagistas e isso é muito significativo: as fumageiras vão legitimar esse discurso germânico e vão se colocar de uma forma muito tranquila – tu observas as bandeiras em preto, vermelho e amarelo [enfeitando] o centro da cidade e no meio lá está escrito “Phillip Morris”, “Souza Cruz”, ou seja, tu tem uma conotação muito interessante: o discurso étnico-racial assume uma posição de vanguarda enquanto o discurso do tabaco vem pra uma plataforma mais de bastidor, mas não é que ele não exista – ele existe!
CZ: Um justifica o outro, se retroalimentam.
MS: Exatamente! E não deixa de ser interessante. Eu sempre digo assim: se todas as fumageiras saíssem de Santa Cruz, o discurso germânico daria conta de manter essa ideia do trabalho, do desenvolvimento? Evidentemente que não teria como. O capital internacional, essa estrutura capitalista ligada à internacionalização do setor agro-tabagista que permite isso. Agora, tu tem questões de características que são muito legais da região, a dimensão de uma ética do trabalho… As pessoas aqui não têm vergonha do trabalho, por exemplo. Então, têm valores muito legais sim dentro da cultura alemã, que tem um caráter protestante muito interessante.
Eu falo de grupos que recebem terra junto com os alemães, inclusive um capitão do mato, com o apelido de Gaiola. Ou seja, se tu tem um capitão do mato, o que mais tu tens na região? Escravos. E a questão dos escravos sempre foi negligenciada porque tinha uma lei que impedia os imigrantes, esses proprietários de terras, de terem escravos. No entanto, não é uma lei que vai fazer com que tu não exerça o poder, seja pagando pra alguém que tenha escravos de ganho, de aluguel, que vai trabalhar na região. Então, tem uma presença e uma diversidade cultural bem interessantes e que vão se estabelecer com esses grupos. Porque também, muitas vezes, a história vai ficar circunscrita às famílias que “deram certo”, os ricos. E aqueles que não deram? Que também tem muito imigrante alemão que se quebrou, “não deu certo”, mora na periferia. A história fica circunscrita a quem teve poder de narrar.
CZ: É a história contada pelos vencedores. As pessoas não sabem que existiram escravos aqui?! É como se não fizessem questão de contar essa parte da história que não é tão bonita. Tu falas sobre algumas estratégias do Poder Público para a criação desse tipo de Mito na cidade. Como tu acha que isso tem relação com a cultura do tabaco?
MS: De certa forma, essa dimensão dialoga com a perspectiva que eu estava colocando na questão anterior, sobre os anos 70. Por que não se constituiu uma identidade alemã antes dos anos 70, início dos anos 80? Observe que nós temos dois momentos traumáticos do ponto de vista da afirmação da identidade alemão na região.
O primeiro é 1937, com o Estado Novo, com Getúlio Vargas, e um dos aspectos do Estado Novo foi a campanha de nacionalização em que as escolas só poderiam ensinar português, que é a língua oficial no Brasil. Ou seja, ele acaba com a possibilidade de ensino de língua alemã e italiana nas regiões de colonização, então este é um fator determinante. O aspecto da língua é uma questão estrutural na construção de uma identidade. E o segundo elemento: o final da Segunda Guerra e os crimes cometidos pela Alemanha nazista, pós 45. Ou seja, são dois dois momentos traumáticos de afirmação da identidade alemã. Nos anos 80, já tem um intervalo de tempo no qual esse trauma não é mais tão presente. E é um momento em que o Brasil também está se abrindo, está saindo de uma ditadura militar, e existe o clima de democratização. Não por acaso, é nesse momento que a Festa da Uva, em Caxias do Sul, é criada, o mito do gaúcho também começa a ser propagado, com a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana… Aqui em Santa Cruz tem a criação de um concurso público, um concurso de monografias para contar a história de Santa Cruz, financiado pela prefeitura e pelo jornal Gazeta do Sul, em 1978. Nesse momento, cria-se um grupo de danças folclóricas alemãs. Quatro anos depois, tem a Oktoberfest. Ou seja, tu tem uma série de políticas públicas articuladas pelo Poder Público para constituir esse imaginário que não existe por conta desses traumas que eu acabei de te relatar. Nesse momento, tu tem a vinculação de um discurso, aí tu inventa, por exemplo, danças. Quando os alemãs vêm pra cá e olham o que acontece aqui, falam: “Mas o que é isso? Meu Deus do Céu, nós somos isso?”. Eles não se identificam porque é uma criação daqui. E vamos comer a cuca com linguiça, entende? A gurizada está lá na Alemanha dançando uma rave de 48 horas, todo mundo a mil, e chega aqui e está o pessoal (faz barulho de bandinha folclórica germânica). Ou seja, é uma invenção de um passado que não se materializa. Claro, tu tem uma determinada região da Alemanha que tenta propagar isso, mas não é que as pessoas andam fantasiadas na rua desse jeito o tempo todo. O que toca na Oktoberfest aqui é pagode e samba, a gente carnavalizou a coisa. Inventa uma tradição com toda uma recriação cultural, isso é muito próprio do Brasil. A melhor cuca é de abacaxi, que é uma fruta tropical. A gente vai misturando as coisas.
A dimensão da cultura é uma recriação que se faz nos anos 80, no momento que é permitido fazer isso exatamente porque antes tu tens um trauma político que é muito sério e é nesse momento que tu vai ter a demarcação de políticas e o tempo todo tu tem que reafirmar a ideia relacionada ao pioneirismo, como [acontece no] desfile, por exemplo, por mais que quem faça os carros alegóricos seja o pessoal que organiza o desfile de Carnaval. Eu tô te falando como pesquisador, como alguém que observa essas coisas, mas para o cidadão comum que vai lá, ele vai encampar esse discurso tão bonito.
CZ: É um discurso bem preparado, foi feito de uma forma que é fácil de aceitar. Mas, por que é interessante vender esse discurso? Mas por que não o discurso multicultural?
MS: No caso de Santa Cruz, estava dado. É uma situação que evidentemente serve a determinados grupos de interesse. E falávamos da cultura tabagista, que de certa forma se protege, permite que esse discurso se propague, enquanto aquilo que financia efetivamente essas possibilidades fica mais protegido de um contexto marcado pela dimensão antitabagista, por exemplo. Enquanto que no resto do país tu tens a identidade muito vinculada a uma festa popular, como o próprio Carnaval, ou o boi-bumbá, no Rio Grande do Sul é uma cultura elitista. A Semana Farroupilha dialoga com a cultura dos estancieiros, uma cultura de elite. No caso de Santa Cruz, também. Ela se permitiu jogar dentro de uma maré relacionada à imigração. Se a gente for analisar efetivamente, sempre temos a criação de mitos de identidade em todo o lugar. Toda tradição é inventada. Quando tu tens que fortalecer a ideia de identidade, ela já morreu, já não existe mais. O que se faz aqui é reafirmar o mito, reafirmar uma cultura, sendo que a grande maioria das pessoas que vive em Santa Cruz já não tem mais descendência alemã, a grande maioria dos jovens já não fala mais o alemão. É a mesma coisa com a cultura do gaúcho: 99% das pessoas não sabem subir em um cavalo, a grande maioria vive nas cidades. Então, tu tens que criar e fomentar um mito como um elo que dá sustentação ao presente, que muitas vezes é um presente difícil, conturbado. Muitas vezes, o passado serve como um alicerce que te segura frente a essa diversidade, às questões culturais que são mais presentes dentro do universo do debate público. E isso tem a ver com o próprio fumo, dessa questão geracional, que é uma cultura propagada pelos avós.
CZ: Existe um discurso de tradição quando se olha para a comunidade afrodescendente em Santa Cruz do Sul? Como tu vê isso acontecendo?
MS: Existe. É muito interessante porque muitas vezes as pessoas tendem a tentar colocar numa ideia de que porque tem um grupo hegemônico, tem um outro grupo que está em uma relação inferiorizada. Eu vejo isso como um certo perigo, porque assim como se inventa uma Alemanha, tenta-se inventar uma África que não existe. Isso é um risco muito grande. No caso de Santa Cruz, é muito notório, por exemplo, a criação da Mais Bela Negra no mesmo ano da criação da Oktoberfest. Eu entrevistei as pessoas que organizavam esse evento e ele foi feito aqui em Santa Cruz durante 20 e poucos anos, olha só que interessante. A ideia do mais bela negra era para mobilizar a autoestima da mulher negra, fantástico! Tinha uns desfiles, inclusive posteriormente, no Mais Belo Negro, em que se colocava roupa nessas pessoas representando uma África colonial, quase como se as pessoas tivessem que sair para agarrar um cipó ou matar um leão, ou seja, uma representação completamente estereotipada. Na minha tese de doutorado, fui para Portugal estudar uma exposição colonial do Porto, onde fizeram um zoológico humano em 1934, assim como em outras metrópoles. Fizeram um zoológico humano, iam nas suas colônias e buscavam as pessoas. Nesse zoológico, foi feito um concurso de beleza no qual a forma com que as mulheres eram mostradas era muito parecida. Então, em Portugal eram os “animaizinhos” que precisavam ser civilizados e aqui em Santa Cruz era para afirmar a autoestima, mas a dimensão simbólica é a mesma. Muitas vezes no afã de fazer uma política de afirmação, tu estás retornando a uma dimensão imperialista, lá do século XIX, estereotipando.
Se a gente tem que problematizar a questão germânica, temos que problematizar a questão africana. Evidentemente, uma coisa é a gente discutir políticas de inclusão, de acesso à educação, da política de renda, de igualdade de oportunidades… Mas, quando entramos no âmbito da cultura e como tu faz para se afirmar, a gente tem que ter cuidado.
Eu, particularmente, amo o samba, e ele tem uma matriz negra que é incrível, é fantástico. Tem que saber dialogar com esses elementos, em um debate a nível de representações culturais é super legal, mas a gente não pode reafirmar a mulata globeleza. Precisamos ter cuidado com aquilo que, de certa forma, era um elemento de propagação de opressão. São coisas que estão aí para serem pensadas.
CZ: Será que essa forma de tentar homenagear tanto a colonização germânica quanto as raízes afro não é uma forma que mais fácil de fazer porque é o que sempre foi feito? Pegar algumas coisas quase caricatas e replicá-las para que isso se torne uma forma de conexão do passado…
MS: É, perfeito. Se tu observar o Carnaval de Pelotas, é uma festa brasileira, mistura branco, negro, pobre, rico, ou seja, o Carnaval é a síntese, se formos pensar no ponto de vista de uma ideia de miscigenação que foi propagada na ideia de Brasil. Por mais que existissem desigualdades, o Carnaval é uma representação da mistura. No caso de Santa Cruz, isso se dá de uma forma diferente porque como tu tens uma invenção de uma cultura alemã, o contraponto se dá na própria perspectiva racializada e aí tu tens que inventar a cultura do negro. Tu não vais inventar a cultura em Rio Pardo porque lá o Carnaval continua sendo forte, o Carnaval é a cultura popular do Brasil, não de Rio Pardo. No caso de Santa Cruz, não. Então, tu inventa uma Alemanha e uma África.
CZ: Como com esse discurso da questão germânica acaba sendo um desafio maior sair dele para reafirmar outras identidades que não sejam a do alemão trabalhador?
MS: Uma cultura essencializada… É pensar na ideia da essência porque – e isso é muito legal que tu esteja problematizando – porque no Brasil a ideia sempre foi a da mistura. O Brasil que se inventa nos anos 30 é o Brasil da miscigenação, tanto que temos um problema sério ao se pensar enquanto raça. O debate racial perpassa muito dentro da universidade. A grande maioria não se enxerga nesse discurso do mundo universitário. Os Estados Unidos têm uma formação que é muito parecida com a que a gente vê em Santa Cruz, que é a demarcação da fronteira o tempo todo. No Brasil, não.
CZ: A motivação da minha pesquisa principalmente focada no tabaco é porque me chamou a atenção vermos os agricultores que cultivam tabaco sendo majoritariamente pessoas brancas e de descendência alemã enquanto as pessoas que estão no chão de fábrica, muitas delas, são afrodescendentes e mulheres.
MS: Aí [entra] a questão que tu fala da tradição e do foco no trabalho e como isso é importante para os descendentes de alemães é interessante de se observar. Como é replicado na lavoura de tabaco e que como parece tem que para fazer sentido o trabalho tem que ser sofrido.
Tem um elemento nessa contradição de que na agricultura do tem uma presença muito forte da colonização alemã e no chão de fábrica, não. Observa como tem um elemento aqui que é muito interessante: exatamente no contexto em que os imigrantes estão chegando aqui – a primeira leva chegou em 1849 e depois têm outras levas que vão chegando progressivamente. Nesse momento, começa a existir no Brasil o debate relacionado à abolição da escravidão e o que que vão fazer com a população de escravos. Observa que esses colonos são marginais na Europa, não são absorvidos pela Revolução Industrial. Quem migra, quem sempre migrou, vide os haitianos e venezuelanos que estão aqui, são pessoas pobres. Eles não migram porque o país de origem está bom. Se está bom, tu fica onde está. O ser humano é sedentário por natureza, ele vai ficar onde está bem. Quem vem de lá são trabalhadores… Tem um professor que fala que as “polacas”, que é a casa de prostituição que se tem antes de chegar em Rio Pardo, eram exatamente mulheres do Leste Europeu que vieram para cá para casarem com agricultores que estavam solteiros e precisavam de família. Quer dizer, boa parte das mulheres que vieram viviam dentro de um contexto em que passava-se fome. Grande parte das mulheres que foram as progenitoras da sociedade elitista de Santa Cruz, estavam em um contexto em que tinham que vender o seu próprio corpo. A história não tem nada de romântica nesse sentido.
Em um contexto no qual a abolição da escravidão está sendo discutida, tu estás dando acesso a terras para essas populações marginais que vêm da Europa e elas conseguem criar, a partir de uma política de minifúndio, dentro da agricultura familiar, a possibilidade de subsistência, coisa que não irá ser garantida para os escravos. Nós vamos fazer uma abolição sem nenhuma política de estado de acesso à terra, por exemplo, com uma Reforma Agrária. Então, é evidente que isso reflete na produção da riqueza da agricultura para um determinado grupo e outro grupo marginalizado vai ser a mão de obra anos depois, séculos depois, trabalhando como mão de obra dentro da estrutura fabril. Se nós tivéssemos garantido uma política efetiva de inclusão social no pós-abolição, nossas condições de desenvolvimento, de acesso a todas as questões, seja educação, saúde ou renda, seriam completamente diferentes.
Muitas dessas pessoas não conseguem ter essa dimensão de que elas foram beneficiadas por políticas de Reforma Agrária!
CZ: Encerrando nosso papo: se as multinacionais que existem em Santa Cruz e que fazem o beneficiamento do fumo deixassem a cidade amanhã, o que tu pensa que aconteceria com a região?
MS: Tem coisas que são muito legais que poderiam ser mobilizadas, como um debate sobre legalização da maconha. Eu acho que a gente teria tudo para comprar esse debate e para ganhar dinheiro dentro de uma estrutura liberal capitalista que seria sensacional. Já tem a mão de obra especializada aqui, vamos produzir maconha! Vamos legalizar e vamos trabalhar dentro da perspectiva liberal. Esse é um debate que as próprias fumageiras poderiam fazer de uma forma muito tranquila porque ao invés de entregar a produção para o tráfico, que não tem fiscalização nenhuma, se faz como é com a questão do tabaco. O tabaco produz e paga altos impostos para o Estado e o mesmo valeria para a questão da maconha. Articularia essa dimensão da produção no meio rural e do beneficiamento no meio urbano, geraria empregos… E faz campanha de redução de danos como foi a feita com o tabaco.
Mal ou bem, com todas as contradições, o tabaco garantiu para Santa Cruz uma classe média com poder de consumo, com poder de gerar empregos, que permite que essa região tenha possibilidades muito legais que outras regiões não têm. Então, eu fico com o tabaco daqui. Eu reconheço todas as contradições relacionadas à cultura tabagista, a questão dos agrotóxicos, de tudo que implica, de uma remuneração inadequada aos produtores… Mas, eu acho que dentro das contradições, ela possibilitou coisas bem interessantes na região. Eu ficaria feliz se a indústria comprasse a pauta e fizesse o debate de legalização da maconha.
É uma perspectiva quase óbvia. Tu tens uma estrutura de uma cidade, de uma região, que tem como pilar uma cultura que está alicerçada há um bom tempo. Eu acho que a questão do tabaco aqui na região tem uma expertise que tu não consegue produzir com a mesma qualidade em outras regiões. Por mais que diminua, acho que a região ainda vai continuar porque ela tem uma tradição de produção de qualidade que não se conseguiria em outros lugares.
Ao meu ver, seria sensacional promover um debate que pense a questão relacionada à maconha. A gente vive em um país bem complicado, no qual essas coisas demoram a avançar, mas não tenho dúvida que lá na frente isso vai estourar. E por que não nessa região?
No Comments